Amigo íntimo e parentes próximos como testemunhas legítimas
Postado em 2023-07-05AMIGO ÍNTIMO E PARENTES PRÓXIMOS COMO TESTEMUNHAS LEGÍTIMAS: a inaplicabilidade do impedimento legal do artigo 228 do Código Civil às testemunhas instrumentárias.
O entendimento segundo o qual às testemunhas chamadas “instrumentárias” não se aplica o impedimento previsto no artigo 228 do Código Civil (“CC”), em seu inciso “IV”, continua sendo aplicado em votos recentes de desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo útil relembrar aos patronos e às partes que a executividade de um instrumento particular, notadamente os contratos que versam sobre normas dispositivas, é garantida pela assinatura de duas testemunhas instrumentárias, independentemente de quem sejam.
Antes mesmo de explorar como a assinatura de duas testemunhas dá azo à constituição de título executivo extrajudicial, nos termos do artigo 784 do Código de Processo Civil (“CPC”), em seu inciso “III”, de rigor identificar a espinha dorsal no exame clínico dos tecidos estruturais que dão vida aos contratos: a falibilidade humana.
Por não serem os juristas filósofos, teólogos ou sociólogos, “falibilidade humana” não é um conceito amplamente invocado pela doutrina e professado com certeza apodíctica no seio da comunidade amante da Jurisprudentia, mas o são o conceito de “boa-fé” e “má-fé”, “ânimo”, “vontade”, “ciência inequívoca”, entre outros, quando se faz necessário investigar a ocorrência de ilícitos civis que geram o dever de reparação, esse soberanamente estabelecido no artigo “5º” da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu inciso “X”.
O momento de celebração de um instrumento particular é o momento de referendar perante o mundo jurídico a ideia de que há certeza entre as partes acerca da falibilidade mútua que lhes impõe a natureza humana, pois, sabendo que o contrato é o ajuste de vontades (1), distinguindo-se do instrumento (que imprime o contrato), qual seria a razão de registrar por escrito os seus termos — gerando um instrumento particular que descreve o objeto, as obrigações e as penas por descumprimento, assinando-o a parte contratante e a contratada, bem como duas testemunhas —, senão a desconfiança mútua?
Certamente, foi essa certeza que orientou as sinapses das mentes que legislaram e fizeram cumprir, no Brasil, o dispositivo processual (CPC, 784) que, justamente no estatuto legal que rege as regras e procedimentos dos litígios nos tribunais, declara quais são os títulos executivos extrajudiciais. Ou seja, declara quais são as formas admitidas em lei de imprimir um ajuste de vontades capaz de ser decidido com a força implacável de uma sentença de magistrado, quando descumprido. É a previsão do descumprimento, é a certeza da possibilidade de falha, de quebra, de inadimplência.
E por rigor do sistema civil law praticado no país, de prestígio à norma positivada, será considerado título executivo extrajudicial o “documento particular assinado por duas testemunhas”. Ausentes as assinaturas, inexistente o título; e o fundamento do caminho para o reequilíbrio da relação contratual quebrada pelo devedor será outro. Quanto às testemunhas, que, no caso, têm um papel instrumentário, essas serão quaisquer pessoas plenamente capazes, ainda que tenham possível interesse direto nos desdobramentos do litígio ou que seja parente próximo às partes.
Em março do corrente ano, decidiu o Exmo. Des. Carlos Henrique M. Trevisan, em sede de ação para executar créditos relativos a despesas condominiais (2), que o instrumento de confissão de dívida, que tinha por uma de suas testemunhas justamente a presidente do conselho deliberativo do condomínio, era bastante apto a confirmar os fatos e validar o título, uma vez que o impedimento do supramencionado artigo 228, inciso “IV”, do CC “se aplica somente à testemunha arrolada em ação judicial. Não atinge a testemunha instrumentária, considerando que esta visa apenas confirmar a veracidade do ato praticado.”. Assim o fez apoiado em precedentes da Corte Bandeirante, como as Apelações Cíveis de números (“nº”) 1008993- 26.2021.8.26.0019 e 1007176-49.2018.8.26.0562.
Harmonicamente, decidiu o Exmo. Des. Álvaro Torres Júnior, em execução igualmente apoiada em instrumento de confissão de dívida, e assinado por duas testemunhas: “Tratando-se de testemunhas instrumentárias, ainda que uma delas tenha parentesco com uma das partes, tal circunstância não impede a formação de título executivo”, assentando que a assinatura do filho da própria exequente não abalaria a higidez do instrumento. Apoiou-se em precedentes como a Apelação Cível de nº 0171958-65.2011.8.26.0100 e o Recurso Especial (“REsp”) nº 1.458.949, julgado no Colendo Superior Tribunal de Justiça para decidir que: “No caso, ressoa inequívoco que não foi aventado nenhum vício de consentimento ou falsidade documental apta a abalar o título, tendo sido arguida tão somente a circunstância do parentesco das testemunhas instrumentárias do credor, o que não revela a existência de nenhuma mácula hábil a afetar a presente execução”.
Ambos os precedentes mencionados, de relatoria dos Exmos. Álvaro Torres e Miguel Trevisan, resultaram em votação unânime pelos desembargadores que compuseram o julgamento dos recursos, prevalecendo o entendimento de que o impedimento daquele artigo 228 do CC, inciso “IV”, não recai sobre as testemunhas instrumentárias.
Contudo, e até por ocasião do mencionado REsp nº 1.458.949, a higidez do instrumento particular se confirma com uma análise que se pode dizer ser holística, uma vez que, se presentes as testemunhas e existente o título, mas esse tenha sido maculado por vícios do negócio jurídico, sobretudo os vícios relativos ao consentimento, deverá ser declarado inválido.
Não que se proponha cristalizar a ideia de que advogado bom é advogado desconfiado, mas é relevante considerar que é bom o profissional que é intercessor preocupado e diligente, ciente das possibilidades (e sensivelmente prováveis) de infrações, inadimplemento e outras situações próprias da vida e dos negócios que levam à fissura do ajuste de ânimos que ligara as partes.
Portanto, considerando o óbvio — que ter em mãos um título executivo extrajudicial é extremamente útil e facilita a perseguição do crédito —, é inteligente desenvolver o protocolo e tornar regra a produção de documentos particulares que sejam submetidos à assinatura das testemunhas instrumentárias, quem quer que sejam, fazendo mais claro e desimpedido o caminho para perseguir com maior chance de êxito o direito do credor.
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1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 3: Contratos e Atos Unilaterais. 15. ed. São Paulo, Saraiva Educação, 2018. p. 22.
2 Agravo de Instrumento 2262167-69.2022.8.26.0000.
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Victor Braga Galha da Silva
Secretário da Comissão de Direito Processual Civil da OAB – Subseção Tatuapé.
JULHO/2023